Espírito Imundo

 

tempores, o mores! Assim diziam os sábios no tempo em que os sábios falavam o latim. Hoje, a modéstia nos obriga a falar numa dessas diversas flores do lácio ou mesmo nas linguagens semi-bárbaras oriundas dos velhos celtas para que a plebe rude nos entenda. Mas isso em nada muda essa situação de degeneração moral que nos envolve, objeto dessas nossas palavras.

Apesar da preocupação da nossa Santa Madre Igreja em substituir seus falhos padres, frades e freiras por santos homens e santas mulheres, essa derradeira safra de religiosos da antiga a todos nos têm envergonhado. Não me refiro aqui à sodomização de jovem estudantes de internato por lúbricos religiosos, ou o desvirtuamento de castas moçoilas por freiras tomadas de luxúria, ou outros desse pecadilhos religiosos discretamente levados a efeito por baixo dos panos, que qualquer ato de contrição resolve de modo satisfatório. Falo de imprudentes sacerdotes, que confundindo a sagrada missa com shows de reggae, ostensivamente abrindo mão da virtude da castidade, falsificando os sagrados segredos do Catolicismo ou trocando a os mistérios ocultos da fé pela chã parapsicologia, colocam em cheque a saúde espiritual da verdadeira Igreja de Cristo.

Ao levar o Santo Papa a divulgar o segredo que a Senhora de Fátima lhe transmitiu, acreditando-se protegida pela confidencialidade da sagrada confissão, fizeram com que o dogma da infalibilidade papal fosse posto em cheque; pois como todos sabemos, ao contrário de Deus e o mundo, o Papa não pode falhar. De qualquer modo, na sua infinita bondade, o Santo Padre apenas quis nos deixar a todos tranqüilos, em vista da falsa divulgação de que esse terceiro segredo preveria o fim do mundo. Na verdade, todos os três segredos da nossa Santa Mãe foram reformulados para divulgação, uma vez que os originais, conhecidos por todos nós religiosos que freqüentam o Vaticano, diziam respeito apenas a leves pecadilhos do seu tempo de jovem na Galiléia.

Quanto à última espécie, falo especificamente do meu colega Quevedo. Esse vaidoso sacerdote, mancomunado com a execrável Rede Globo, sob o comando do próprio Belzebu, tem tentado induzir o nosso ignaro populacho de que a obra de Satã é, como corno, apenas algo que lhe botam na cabeça, coisa que Freud e não São Tomás de Aquino explica, reduzindo os milagres do Nosso Senhor a simples atos de mágica barata, desviando nossos clientes possuídos para as mão de ávidos psiquiatras ou psicólogos.

Essa semana tivemos na nossa paróquia um perda irreparável. Nossa amada beata Honorata passou dessa para melhor. Foi para Miami como governante do honesto casal Collor de Mello. Mas aprouve à previdência colocar em seu lugar um prestativa senhora carioca, esposa de um advogado da Petrobrás, que encontra-se de férias em nossa cidade, uma das pessoas mais dadas da paróquia, sempre se oferecendo, sempre disposta a quebrar o galho dos nossos paroquianos. E foi exatamente com essa nossa jovem e bela paroquiana que tivemos uma experiência que a parapsicologia do sem-fé Quevedo não explica.

Batia a meia-noite no relógio da sacristia quando a jovem Clarinha, como nós a chamamos, bateu na porta da nossa clausura. Fiquei sabendo disso quando, abrindo a porta, dei com ela envolta numa capa negra, seus cabelos dourados cascateando sobre a capa. 

- Américo, meu santo - disse-me ela - meu marido foi a uma reunião do Sindicato dos Petroleiros e estava me sentindo tão só e desprotegida que vim procurá-lo. 

Logo vi que Satanás, o tinhoso, estava por trás daquilo. Não sei se pelo pelo fato dela nunca me ter chamado pelo primeiro nome antes, se pelo sorriso luxurioso que exibia ou se por não lhe ter sobrado sequer uma peça de roupa quando deixou cair a capa. De qualquer modo, minha intuição latejava, me dizendo que algo estava errado.

Saí incontinenti e fui à sacristia buscar algo que aquecesse a pobre mulher, já que na minha espartana acomodação nem um cobertor cobre a minha modesta enxerga. Só achei uma garrafa de uísque vagabundo, por certo do nosso intemperado sacristão, o Damião. Procurei por um pouco de água benta. Não havia sobrado nenhuma da última cerimônia. Na pia, nem uma gota de água. Na geladeira, garrafas vazias. Benzi rapidamente uma cuba de gelo que encontrei no congelador e voltei ao meu claustro.
A imodesta Clarinha encontrava-se de pé, ao lado do meu catre, sua pujante nudez exposta à visitação, do jeito que o Diabo gosta. O ambiente estava frio, como soe ocorrer  nos aparecimentos do Coisa-Ruim e minhas mãos gelavam, embora faltasse aquela fumacinha a nos marcar o hálito, que Hollywood mostra tão bem.

- Beije-me, Américo! - disse a mulher do rábula, com a voz rouca, por certo a do próprio Satã, aproximando o seu rosto do meu.

Seu hálito, ao contrário do que rezam os tratados de possessões demoníacas não tinham o fétido odor de enxofre. Muito pelo contrário um agradável odor de hortelã pimenta. Tentei aspergir um pouco de gelo bento sobre a infeliz mas, quem já tentou aspergir gelo sabe como a tarefa é difícil, senão impossível. Coloquei então um pouco do uísque do sacristão num copo e nele pus as pedras de água benta. Nada mais eficiente que atacar o inimigo de dentro das suas próprias fileiras. Ela tomou um gole, fazendo cara feia. O Chifrudo devia estar sentindo a água benta em suas entranhas.

- Não tinha nenhum 12 anos? - Perguntou o Príncipe das Trevas, através da boquinha carnuda e sensual da pobre mulher.

O que quereria dizer o Espírito Ruim com 12 anos? Como todo exorcista sabe doze é um número cabalístico de grande poder. Doze eram as sacerdotisas de Ceres e os sacerdotes de Marte. Doze são os meses, as constelações atravessadas pela eclíptica, os signos do Zodíaco. Doze foram os pares de Carlos Magno e as tribos de Israel. Doze são as cavidades do cabo-verdiano ouri... Por certo o Rabudo tentava me confundir. 

- Perdão?

- Um selo preto - insistiu ela.

O negro selo do Demônio! Minhas mãos eram duas pedras de gelo. Eu também precisava aquecimento. Assim, coloquei uma dose dupla do uísque, embora minha intemperança não passe de uns raros cálices de vinho de missa. Acrescentei algumas pedras de água benta para me ajudarem na luta contra as forças das trevas. Uma onda de calor atingiu o meu rosto e eu senti a presença do Espírito Santo.

Olhei em torno procurando o meu crucifixo. Estava na mesinha por trás da jovem mulher. Estendi a mão para pegá-lo, do que aproveitou-se Satanás para jogar contra mim a beata, que temerosa aninhou a sua impávida nudez em meus braços, com a respiração profunda e incontrolada.

- Você podia pegar o meu crucifixo? - pedi com delicadeza.

- Você vai ver o que eu faço com o seu crucifixo - respondeu o Arrenegado pelos róseos e macios lábios da infeliz.

- Pode deixar! - falei, segurando-a para evitar uso inadequado do sacro instrumento, que tudo tem os seus limites.

Lenta e firmemente ela começou a desabotoar a minha batina. Para meu desespero, um a um, os botões, como filhos pródigos, iam deixando as suas casas. Contando que tinha algum tempo, já que minha batina tem 60 botões,  enchi o copo de uísque até a borda, pois apesar do meu rosto pegar fogo, minhas mãos continuavam geladas. Isso provocou uma inundação quando acrescentei as pedras de gelo bento. O uísque derramou-se pelo meu peito. A beata, por certo sofrendo o mesmo frio, enquanto eu bebia do copo em grandes goles, lambia o uísque diretamente da minha pele.

Impaciente com a monótona faina de desabotoar, ainda no vigésimo botão, Clarinha arrancou-me o hábito pela cabeça. Embora me considere um homem de hábitos arraigados, perdi o hábito num piscar de olhos. E lá fiquei eu numa luta de vida e morte contra o Cafute, num ridículo cuecão estampado.

Aproveitando-se da nossa confusão e posição, o Bute fez o quarto rodar, nos jogando sobre o catre.

- Possua-me! - ordenou-me a beata com a voz rouca, do Azucrim. 

Isso acabou de me confundir. Afinal, de praxe é o Demo que nos possui e não vice-versa. O quarto rodava e deslizei maciamente para o oblívio. Não me restam mais que vagas lembrança da beata sobre mim em movimentos convulsivos e de repente, uma sensação da vida se esvaindo de mim.

No outro dia pela manhã acordei com uma forte dor de cabeça, como de praxe sofrem os sacerdotes após um exorcismo. Ao meu lado, a beata dormia um sono tranqüilo. Suas feições angélicas indicavam que o Príncipe do Ar tinha sido expulso. Levantei, vesti-me e fui para o altar dar graças ao Senhor pelo sucesso do nosso exorcismo.

Desde então a beata Clarinha não me larga. Está sempre atrás de mim como um cachorrinho. Grata até os fios dos lindos cabelos dourados. De vez em quando pergunta quando vamos repetir a dose. Não consigo entender como alguém que conseguiu se livrar do Capeta pode pensar em submeter-se a outro exorcismo.

Deo vult!

Padre Américo

 

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